TRABALHADORES INVISÍVEIS
“O trabalho é a ontologia do ser social. É por meio do trabalho que o gênero humano desenvolveu-se, inferindo no mundo inorgânico, ou seja, na natureza, para transformá-la a revelia de suas necessidades, produzindo outras necessidades, e, por conseguinte, transformando a si mesmo. Desta forma, a humanidade pôde se externalizar no mundo e produzir a sua história.”
Luciana Brauna,
pesquisadora do projeto.
Os trabalhadores estão por toda parte na cidade, desde suas construções e da produção das suas riquezas até o necessário para a manutenção diária da vida. Em meio à pandemia de Covid 19, a nossa dependência dos trabalhadores ficou ainda mais evidente.
in•vi•sí•vel
adjetivo de dois gêneros
1. que, por sua natureza,
não tem visibilidade.
2. que não corresponde a
uma realidade sensível.
Esse projeto retrata os trabalhadores da cidade de São José dos Campos, aqueles que sempre foram e continuam sendo a linha de frente do essencial.
Por meio da fotografia de rua, o fotógrafo Pedro Dias te convida para uma caminhada pelas ruas da cidade de São José dos Campos, interior de São Paulo.
Qual cidade você vê?
O que é essencial e o que é invisível?
PARTE II
PARTE III
Luciana Brauna
Mulher negra, cientista social – UEL,
professora, mãe, ativista social
e poeta escrevivente.
Quem conta a História?
“Como conhecer a história? Que história queremos fazer? Como ter empatia pelos vencidos?”. Essas e outras questões foram propostas pelo historiador Walter Benjamin em seu último texto, “teses sobre a filosofia da história”, uma vez que este se dedicou a produzir em sua trajetória “uma concepção de história, afastada tanto da historiografia tradicional da classe dominante (A história dos vencedores), como da historiografia materialista triunfalista”. (ARRIADA, 2003). Desta forma, assim como Benjamin, compreendemos que convocar a “voz dos vencidos”, como reclamantes de direitos, lugares e heranças, é lançar mão da verdade na história. Visto que os vencedores impõem quais eventos possuem significados, sejam estes compatíveis com a realidade ou não. (1)
São José dos Campos: A História fundada no mito
Há uma linha cronológica de autores que relegam à José de Anchieta o mito fundador do município de São José dos Campos. (2)
Tal narrativa vem sendo reforçada a partir de nomes que compõem as ruas do município até hoje. Ainda que no ambiente acadêmico estas versões “oficiais” da história única venham sendo questionadas, é no silenciamento dos povos subalternizados que a narrativa do mito colonizador adquire status de verdade.
O massacre da etnia indígena Guaianá, que era originária desta parte do território, é descrita como “confronto” e a desterritorialização deles é tida como “transferência” e “aldeamento”. O calendário é colonial, a narrativa que se reforça, também. Os nomes originários residentes da região compõem o imaginário social como a permanência do “exótico”. Folclorizado. E, portanto, esvaziado de sentido. Seja no nome de uma rodovia, seja no nome de uma rede de supermercados, ou de um bairro; a história cede ao mito e o mito se torna História. (3)
Enquanto isso, os corpos que materializaram e ainda materializam a riqueza socialmente produzida, permanecem invisibilizados.
Trabalhadores Invisíveis
A “memória” é o elemento que consegue aprisionar o tempo e suas emoções. Por meio dela conseguimos acessar o comum para tirá-lo do “lugar comum”. É isto a que se propõe este trabalho, ao permitir o registro das memórias, que de forma costumas são historicamente apagadas; ao captar as imagens de trabalhadores e trabalhadoras, que no contexto da pandemia do Covid-19 se viram impossibilitados de exercerem o direito ao isolamento social, uma vez que a reprodução de sua vida e de suas famílias depende do trabalho cotidiano nas ruas da cidade invisível. (4)
Invisível, porque sequer se reconhece; se tem destaque ou conta com limitada política pública para redução das disparidades sociais que compõem a oposição entre a São José moderna e cosmopolita e a São José que só se tem acesso por meio de longas jornadas no transporte público, nos bairros afastados, devido às políticas de “desfavelização” e de ocupação capitalista do espaço propostas a partir do século XX, momento em que a cidade adentra com afinco na lógica industrial. E já no século XXI, na lógica dos serviços.(5)
Uma questão de gênero, raça e classe.
Qual é a cor da mão que dirige a moto do aplicativo que leva a entrega? Qual é a cor da mão que varre a rua, que dirige o caminhão, que limpa a casa no condomínio do Aquarius? Qual é o gênero de quem cuida dos enfermos no hospital da Vila e das crianças nas “casas de família”? Se não é permitido tecer respostas através de generalizações do senso comum, devemos resgatar a bibliografia da história e seus marcadores estatísticos, com aquilo que pode ser “lido” nas ruas da cidade. (6)
Não é por acaso. Que sejam maioria de negros e mulheres a mão de obra “intermitente”, “precarizada” e desprovida de garantias e direitos trabalhistas, que desempenham as funções essenciais e invisíveis. Antes da pandemia, esses já o faziam, uma vez que o “racismo estrutural” e a “desigualdade de gênero” operam no tecido social definindo lugares e não lugares a estes sujeitos de forma interseccional, ou seja, de forma combinada. Em outras palavras, a dinâmica das relações econômicas e de trabalho, se dão impregnadas às condições históricas aos quais são submetidos alguns corpos. Corpos estes considerados “inferiores e descartáveis”, passíveis de serem explorados e oprimidos, pois trazem consigo a marca da escravidão inacabada. Não reparada. Trazem a marca do machismo. Do trabalho não pago na jornada dupla ou tripla. Entre os cuidados da casa e dos filhos. (4)
Corpos esses, inseridos na lógica da desigualdade social que grita em silêncio na cidade. Qual bairro é arborizado e conta com ampla manutenção das vias e das praças? Qual bairro conta com ampla oferta de serviços sociais de qualidade?(7) Em quais bairros faltam água toda semana? Em quais bairros a segurança pública é truculenta? Em quais corpos pesam a violência dos fiscais de mercadoria da prefeitura? Que sotaques agridem aos ouvidos dos estabelecidos?
Aqui é o meu lugar...
Versa a música da emissora de TV local. Ressaltando as belezas e o solo fértil ao qual se faz semeadura de todo sonho brasileiro. Durante todo o século XX, em face da perversa lógica de “substituição de mão de obra no pós abolição” (8), houveram momentos de intensificação de fluxos migratórios para a cidade.
Seja na incipiente industrialização do município, com o estabelecimento da Tecelagem Parahyba na zona norte no começo do século (9); na intensa vinda de enfermos em busca de tratamento para problemas respiratórios na chamada “fase senatorial” (10); ou no período do “milagre econômico” experimentado durante a ditadura civil militar em face da redistribuição global do capital, que culminou na implementação da indústria automobilística, aeronáutica e posteriormente de ciência e tecnologia; a demanda por mão de obra nesses distintos períodos estimulou a chegada de gente de toda sorte para ocupar tais postos de trabalho e o espaço urbano. (11)
À medida que a cidade crescia, se desenvolvia e se distribuía de forma desigual e combinada sua geografia. Mineiros, Nortistas e Nordestinos, trazendo na bagagem suas referências culturais. Mas nem sempre reconhecidos como parte vital da cidade que pulsa na diferença. Sobretudo neste contexto de aumento da pobreza e da escassez de trabalhos e recursos. A xenofobia é absorvida e traduzida na cultura de comércio de rua. Quando é possível ouvir no traçado central as vozes dissonantes. Entre os “de fora” e os “estabelecidos”
Promessas de sol
Já é possível verificar cientificamente, por meio de dados estatísticos, que a pandemia por Covid 19 vitimou com mais intensidade a população negra, pobre, e residente das periferias das grandes cidades. Além disso, conforme consta em relatório recente da Cebrap, o fosso da desigualdade racial e de gênero no mercado de trabalho também aumentou no mesmo período. Reforçando a importância e a validade deste trabalho.
Registrar esses corpos é tarefa fundamental para a constituição da memória de nossa cidade para que não incorra no erro histórico de ignorar essa cidade invisível. No entanto, além de olhos, precisamos ser ouvidos para que esses corpos se tornem visíveis e compreendidos a luz de suas próprias narrativas. Em primeira pessoa.
Desta forma, este trabalho de pesquisa, só pôde ser possível mediante levantamento bibliográfico, uma vez que a pesquisadora estava inserida na lógica desigual que permitiu que apenas alguns corpos gozassem do direito ao isolamento social. Sendo assim, ainda não foi possível realizar essa tarefa de escuta qualificada desses trabalhadores e trabalhadoras essenciais com a tônica e o alcance ao qual gostaria de ter realizado na pesquisa. Embora tenhamos tido rica amostra com a oficina de fotografia proposta aos jovens residentes no bairro Pinheirinho dos Palmares que proporcionou a captura de imagens em primeira pessoa, evidenciando o olhar desses jovens remanescentes da violenta desocupação do Pinheirinho em 2012. (13)
Com essa promessa de sol, esperamos poder num futuro próximo, estarmos vivos para ouvirmos irromper do grito quebrando o silêncio dos invisibilizados. Pois sabemos que não é tarefa nossa “dar voz” a quem já tem voz. Cabe a nós ceder escuta, registro e olhar sensível aos corpos políticos em disputa na cidade ensurdecida.
Referências Bibliográficas
ARRIADA, Eduardo. “Uma história dos sem nomes: a visão de história em Walter Benjamin”. Historia da Educação, ASPHE/FaE, Pelotas, n. 14, p. 195-209, set. 2003. (1)
FRAGA, Estefânia Knotz Canguçu; ROQUE, Zuleika Stefânia Sabino. Anchieta, mito fundador de São Jose dos Campos: possibilidade de pesquisa e de interpretação. “São Jose dos Campos: de Aldeia a Cidade”. Organizado por Maria Aparecida Papali; Coordenação da Serie Maria Aparecida Papali e Valeria Zanetti. São Paulo: Intergraf, 2010.
228p.: il.; 22,5cm
(3) COSTA, Suele França; TEÓFILO, Tatiane Nunes; OLMO , Maria José Acedo dei; ARÊDES, Diego Emílio Alves. O Aldeamento de São Jose do Parahyba: Indígenas, Conflitos e Administração Civil. . “São Jose dos Campos: de Aldeia a Cidade”. Organizado por Maria Aparecida Papali; Coordenação da Serie Maria Aparecida Papali e Valeria Zanetti. São Paulo: Intergraf, 2010.
(4) Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia. Informativo Desigualdades sociais e Covid-19, Fevereiro, n.7.2021. Disponível em https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Informativo-7-Desigualdades-raciais-e-de-ge%CC%82nero-no-mercado-de-trabalho-em-meio-a%CC%80-pandemia.pdf
(5) RESCHILIAN, Paulo Romano. “Habitação Social e Ordenamento Territorial: A Dinâmica Socioespacial do Processo de Inclusão Precária de São José dos Campos (SP)”. Crescimento Urbano e Industrialização em São Jose dos Campos/Coordenação Geral da Serie: Maria Aparecida Papali e Valeria Zanetti; Organizadores do volume: Sandra Maria Fonseca da Costa e Leonardo Freire de Mello. Sao Jose dos Campos: Intergraf, 2010.
(6) LIMA, Raquel de Souza Martins. “SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL E RACIAL DE MULHERES NEGRAS NA CIDADE DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS, SP: INVISIBILIDADE, PRECONCEITO E DIREITO À CIDADE”. Universidade do Vale do Paraíba Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento, programa de pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional. 2020.
(7) FERNANDES, Marilne Thomazello Mendes. A Segregação Mostrando sua Forca na Produção do Espaço Intraurbano: O Deslocamento da Classe de Alta Renda na Cidade de Sao Jose dos Campos (SP). Crescimento Urbano e Industrialização em São Jose dos Campos/Coordenação Geral da Serie: Maria Aparecida Papali e Valeria Zanetti; Organizadores do volume: Sandra Maria Fonseca da Costa e Leonardo Freire de Mello. São Jose dos Campos: Intergraf, 2010.
(8) PAPALI, Maria Aparecida. “São Jose dos Campos: A Vida na Abolição (1888)”. São Jose dos Campos: de Aldeia a Cidade. Organizado por Maria Aparecida Papali; Coordenação da Serie Maria Aparecida Papali e Valeria Zanetti. Sao Paulo: Intergraf, 2010.
(9) OLMO, Maria José Acedo del; VILELA, Giovana Zamith; RAMOS, Waldecy Serafim; SOUZA, Victor de. Mulheres e operárias na Tecelagem Parahyba em São José dos Campos (1930 – 1968). São José dos Campos: cotidiano, gênero e representação / Antonio Carlos Guimarães e Valéria Zanetti (Orgs.); Maria Aparecida Papali, Valéria Zanetti (Coords. da série). - São José dos Campos, SP: UNIVAP, 2014.
(10) Fase Sanatorial de Sao Jose dos Campos: Espaço e Doença/ Coordenação Geral da Coleção: Maria Aparecida Papali e Valeria Zanetti; Organizadora do volume: Valeria Zanetti. São Paulo: Intergraf, 2010.
(11) FRANCA, Gilberto Cunha. “O Trabalho no espaço da fábrica: Um estudo da General Motors de São José dos Campos (SP). São Paulo: Expressão Popular, 2007
(12) Disparidades raciais no excesso de mortalidade em tempos de Covid-19 em São Paulo. Informativo Desigualdades sociais e Covid-19, Março n.8.2021. Disponível em file:///C:/Users/Convidado/Downloads/Informativo%208%20-%20Disparidades%20raciais%20no%20excesso%20de%20mortalidade%20em%20tempos%20de%20Covid-19%20em%20Sa%CC%83o%20Paulo_final.pdf
(13) TEIXEIRA FILHO, Mario Montanha. “A Atuação do Judiciário nos conflitos de terras: o caso do Pinheirinho”. Campinas- SP, 2016. Disponível em http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/322689/1/TeixeiraFilho_MarioMontanha_M.pdf
Relato de uma produtora cultural
Por Aline Souza
A “produção cultural” é uma dessas expressões guarda-chuva, que pode significar muitas coisas diferentes, desde uma função exercida por um profissional até a soma do conjunto de construções simbólicas de uma artista, uma coletividade, um povo. Nessa reflexão tratarei sobre a minha construção pessoal do sentido de produção cultural como função – me identifico como produtora cultural, ou produtora-criadora (como tenho chamado de uns tempos pra cá) - e pra isso, trago meu relato com a criação e realização de projetos culturais.
Criar um projeto é um trabalho de muitas camadas. Pensa-se sobre si mesmo, a sociedade, os anseios, as potências e também sobre os limites. Existe na sociedade uma cola invisível e resistente afirmando que o mundo está feito e está aí. Cabe a nós vivê-lo, aceitá-lo. Quem não encontra conforto, paz e tranqüilidade nessa forma de experimentar o mundo pode se sentir deslocado, angustiado, até maluco. Eu sou uma dessas pessoas e encontrei nos projetos culturais uma forma de vida, mais do que uma ocupação.
Quando crio e realizo um projeto não o faço por altruísmo, utopia. Faço como uma ação de autocuidado e como uma escolha de como “existir” no mundo. Claro que quando escolho por mim de certa forma escolho para o mundo, assim como todas as nossas ações em comunidade, mas não tenho grandes pretensões, apenas o desejo de atender a essa sensação lá no fundo de que sempre tem uma coisinha diferente pra fazermos, experimentarmos e vivermos melhor.
Reconheço a importância do acesso à educação e às políticas públicas, nesse caso em especial às políticas de cultura. Acredito e aposto muito na potência de microrevoluções e me entristeço muito em ver tantas barreiras invisíveis para a fruição e criação de ações culturais.
Esse texto pode ser apenas um relato pessoal sobre minha relação com o trabalho de produção cultural, mas também pode ser um convite para olharmos outra dimensão invisível da nossa sociedade: a criativa e autocriativa.
Faz um tempo que parei de buscar autoconhecimento e passei a me dedicar a minha autocriação e, em tempos tão sombrios, onde o valor da vida está em dúvida, me criar e contribuir para a criação do mundo a minha volta me parece a única coisa realmente importante.
Ficha Técnica
PEDRO DIAS
Fotografia e Design
LUCIANA BRAUNA
Pesquisa e texto
ALINE SOUZA
Produção executiva
e revisão
Projeto nº14/FMC/2020 Trabalhadores invisíveis, realizado pelo Fundo Municipal de Cultura de São José dos Campos.
O conteúdo desta obra é de responsabilidade exclusiva do autor e não representa a opinião dos membros do Conselho Gestor do Fundo Municipal de Cultura ou da Fundação Cultural Cassiano Ricardo.
Realização:
Financiamento:
Apoio Institucional
Agradecimentos
Hospital Pio XII
Supermercado Piratininga
Urbam
Para que um projeto como esse aconteça, muitas ajudas invisíveis são necessárias, por isso deixamos aqui nosso agradecimento a Analie Peligrinelli, Daniel Corbani, Guilherme Cursino, Marcela Anita, Piu Dip, Vanda Siqueira, Vitória Landi, Vida Walkiria.
Esse projeto é dedicado aos trabalhadores dos aplicativos, das ruas, das feiras, da vigília, dos restaurantes, da limpeza, da saúde, das construções, da cultura, do comércio, da reciclagem, dos cemitérios, dos cuidados da casa, das quebradas, das áreas nobres, das rodovias, do trânsito, dos postos de combustível, dos caminhões, da segurança, do Hospital Pio XII, do Supermercado Piratininga, da Urbam, e todos àqueles que fazem a vida em São José dos Campos possível.
Obrigado(a)!
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